
A lua com a cor de rótulo da Coca-Cola dava um tom rubro a noite, ao seu lado brilhavam pedaços das constelações privatizadas, duas estrelas da Fuji-General-Motors e cinco da Orange-Software, muito abaixo das leis simples da mecânica celeste uma caixa retangular autômata atrapalhava a marcha dos transeuntes, perseguia ratos florescentes, alguns deles com protuberâncias cancrosas que tomavam a forma de celebres logotipos, doenças engenhadas para anunciar produtos, “spams” biológicos, no caríssimo devir do trafego motocicletas céleres dominavam os polímeros acinzentados, tiravam a inspiração para suas formas de kanjis, de modo que já não se lia mais um texto em japonês sem que viesse a cabeça um catálogo de motocicletas. No meio da floresta de neon a ovelha disforme emitia seu balir elétrico, e a frente do clube de shadowrunners sangue artificial agora coloria a rua com a cor antiga do céu, um azul claro levemente brilhante, que brotava do corpo do homem esfaqueado por um dos shadowrruners...
Indo em direção ao sinal da ovelha disforme e suas lãs elétricas estava um pequeno grupo em trajes pseudo-barroco, rostos cobertos por máscaras venezianas onde brotavam hologramas com florais estampando fauna fictícia extinta, ao verem o sangue artificial dando a rua um leve aspecto “Juan Miró”, eles partiram... Eram contratantes, e naquele dia pagamentos seriam adiados, contratos deixariam de ser fechados dentro do “Eletric Sheep”.
O barman articulou seu braço mais poderoso, não a sucata cybernética que tem implantada no lado esquerdo, e sim o braço com músculos naturais cultivados “in loco”, e de baixo do balcão trouxe um estranho objeto, um tijolo de metal negro, pesadíssimo, depois apanhou outro tijolo idêntico, e os colocou sobre a superfície de textura simulada, o não-mármore da mesa.
Um calafrio correu pela espinha de todos os shadowrunners que habitavam o Eletric Sheep naquela hora, no meio dos retângulos estavam escavadas as formas pitorescas de suas taças, aquilo eram fôrmas... Depois ele apanhou uma garrafa com um navio majestoso no rótulo e disse: “Tenho uma garrafa de ‘Galeão Naufragado’ aqui, pena que não temos copos para bebê-lo!”. Naquele rótulo uma tempestade laudrequiana contrastava com a serenidade do líquido dentro da garrafa, um defeito, o barmam deu alguns trancos na garrafa e logo o liquido começou a agitar-se sozinho, integrando-se a tempestade do rótulo – em 1811 um galeão foi encontrado no fundo do mar e dentro dele algumas caixas de vinho foram conservadas intactas, diz-se ser o presente de um monarca europeu a um tal Napoleão, seu sabor foi então sintetizado e essa tragédia de tempos idos foi transformada em um produto e produzido em série, nascia o”Galeão Naufragado”. Tal vinho é muito mais do que a bebida das elites, ele é a bebida que o senso comum pensa ser das elites, o que a torna um símbolo de status.
Five B. estava ali, o cowboy manejando um Colt Walker 1874, suas roupas de falso couro artificialmente envelhecido, cheias de poeira ornamental e caríssimas manchas decorativas, com seus 23 anos e rosto aparentando mais de 50: calvície, rugas, cabelos que caem quase brancos das têmporas. Sua voz é modificada, idêntica a de um antiqüíssimo personagem de videogame com a adição de um sotaque sulista que comprou em uma liquidação; suas roupas onerosamente exalam o cheiro acre e rústico dos campos, mesmo seu hálito é modificado para ter voluntariamente o aroma azedo do uísque. Ele despreza armamentos modernos e é um amante de tecnologias antigas, orgulha-se da maneira com a qual maneja seu velho revolver sem jamais ponderar que o faz com um braço artificial de 120.000 neo ienes, suas contradições jamais o incomodaram ou foram sequer percebidas. No inicio Five B. era a abreviação de “cinco balas”, maneira metafórica com a qual fazia seu marketing pessoal junto a negociantes, dizendo-lhes que era capaz de cumprir qualquer que fosse o contrato com apenas “cinco balas”, a capacidade do estomago de seu Colt Walker, a partir de certo ponto incógnito tal bravata tornou-se uma obsessão, literalmente, e passou a empenhar-se em usar somente cinco tiros para cumprir suas missões, a ponto de aquilo que antes fora uma bravata tornar-se seu nome: “Five B.” – Pouco importa, ele possui um arsenal de tantas outras bravatas bem maior que a capacidade de seu revolver obsoleto e letal: “Tudo o que tem carne me teme!”, “Não importa a quantidade de implantes, se houver um milímetro de carne, eu acerto!”.
É difícil representar o que o barman representa para Five B., para ele o proprietário do Eletric Sheep era como o narrador de um antigo Role playing game, RPG de mesa, o cara que indicava os contratos, logo era através dele que Five B. podia manter a aparência e identidade que tanto gostava, contanto que o barman continuasse lhe indicando contratos que pudesse cumprir com sua aparência e identidade de cowboy, geralmente missões diretas de assassinato. Essa estranha relação de poder ou talvez mesmo manipulação não importavam ao cowboy, o importa somente manter-se como é, e por isso ele inibiu a ação dos outros shadowrunners ali presentes, o fez com uma escarrada fedorenta de 40 créditos Biotech no chão, o cuspe escorreu num ideograma nojento de significado legível a todos: “Eles são meus, não se metam!”.
Dentro de três horas no máximo Five B. planejava estar de volta ao Eletric Sheep, saboreando Galeão Naufragado em uma nova taça de ossos futuristas...

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