domingo, 3 de abril de 2011

TEMA DO JOGO: A CONSTRUÇÃO E RECONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE

Ainda que uma história, o capítulo de uma história, uma crônica e mesmo uma cena tenham temas próprios e diversos, o tema individual dos personagens e do jogo em si será a “identidade” em constante mudança.
Um dos temas mais recorrentes no cyberpunk é a “identidade”, ou a sua perda, uso dois exemplos que acho que serão os mais conhecidos entre nossos jogadores: Em “bladerunner” o policial caçador de andróides descobre que é ele mesmo um andróide, em “Matrix” neo é o funcionário de uma empresa de software, que descobre que é um humano escravizado pelas máquinas, que descobre que é o “escolhido” para salvar a humanidade. Entretanto todas essas histórias possuem uma estrutura fixa: o protagonista sempre parte de uma “identidade inicial” para no fim descobrir o seu “eu” verdadeiro. No jogo proposto tem-se o fim de uma “identidade final”, definitiva, não existe um “eu” verdadeiro, nem sequer é fácil definir uma identidade inicial, apenas a constante construção/desconstrução e reconstrução da identidade.
A alma/mente é uma tabula rasa onde o conhecimento pode ser escrito livremente, e neste mundo a técnica/tecnologia proporciona “modos de escrita” mais avançados que qualquer modelo de aprendizagem tradicional. No entanto tal conhecimento/habilidade não se transfere de forma “neutra” e “unidimensional” para a mente do individuo, eles podem portar valores históricos da época em que foram produzidos, das pessoas que a produziram, da finalidade para a qual foram produzidas, etc... Em termos práticos significa que alteram a subjetividade/personalidade de um personagem: Adicionam-lhe ou suprimem traços morais, comportamento, visão de mundo, objetivos de vida, e tudo o que disso possa advir. Para aprender Kung-Fu dos monges amarelos do Tibet um personagem simplesmente vai até a banca da esquina, compra o chip específico e o implanta, a nova habilidade pode vir com um bônus: “saiba gratuitamente três frases da sabedoria milenar chinesa”, o que conferiria a ele um parco conhecimento de mandarim, e quando fosse de fato usar sua nova habilidade para cumprir determinada missão poderia ver-se sob um voto de “não matar”, e ainda tempos depois descobrir (ou não) que sua dieta também transformou-se.
Neste mundo a personalidade/self/identidadede um personagem é construída e transformada pelos produtos que ele consome.
A “moralidade” portanto não é uma espiral descendente como em “Vampiro”, tampouco uma linha curva ou em ziguezague como nos sistemas de “Karma” de outros RPGs, sequer é uma linha pois é descontínua, um personagem pode ser capaz dos feitos mais atrozes em um dia e realmente ser benevolente no outro, “Natureza” e “Comportamento” existem, todavia são dinâmicos. Um jogador ou personagem também pode operar tais mudanças voluntaria e conscientemente: existem chips de comportamentais, chips de personalidade... Digamos que certa missão requeira do personagem que se infiltre em um círculo de homossexuais, ele tem então a alternativa de se passar por um deles ou realmente sê-lo. Caso “torne-se” realmente um deles pode vir a simpatizar com seus agora ex-inimigos e abandonar a missão,pode perceber que não “tornou-se” um homossexual, dirá que na verdade sempre fora um, apenas reinterpretará sua vida e seu passado, recriando quais foram sempre suas verdadeiras motivações. Isso significa que um personagem que voluntariamente “troque” sua personalidade não tenha necessariamente controle sobre essa nova identidade, ou mesmo a certeza de como ela será, pois uma personalidade implantada pode não suprimir a antiga, pode também somar-se a ela dando origem a uma nova personalidade diferente da soma de suas partes: o personagem homo fóbico que implanta o chip de personalidade homossexual pode tornar-se hetero fóbico e ver os heterossexuais como aberrações da natureza, ou ainda reprimir sua nova “verdadeira natureza” tornando-se ainda mais homo fóbico, e por fim acabar matando um NPC antes de obter as informações que precisaria obter dele.
Para além do tema do jogo tem-se um novo aspecto estrutural, a fusão de duas etapas dissociadas no processo de criação do personagem: Mesmo o mais casual dos jogadores, aquele que simplesmente só põe bolinhas em uma ficha, estará concomitantemente já criando uma “personalidade” complexa, com todas suas contradições e dilemas.
Usando “Vampiro: A Máscara” como comparação, tem-se o fim da linearidade do “prelúdio”, o conceito de “história de vida” é difuso e dúbio, essa “história de vida” é criada e recriada, reinterpretada constantemente: O velho decrépito doutor em metafísica pode ter 23 anos de idade e ter passado por um procedimento de crescimento acelerado, a bela transeunte oriental na rua pode ter comprado gênero e traços asiáticos, sendo depois disso um músico negro. Cada um desses personagens tem sua “história de vida” individual, o fato interessante é que são todos fisicamente a mesma pessoa!!! Aquilo que a mulher oriental diz de seu período como um velho doutor não é o que o velho doutor diz de si e de seu período como mulher oriental, e certamente não será o que o músico negro dirá deles e de sua vida quando tornarem-se eles.
Não existe portanto um “prelúdio” que possa de forma determinista justificar o estado atual de um personagem, suas motivações ou circunstancias decisivas até ter se tornado quem é,, responder a pergunta “quem ele é?” através da pergunta “como se tornou o que é?”. Existem sim não uma, mas uma miríade de respostas possíveis, e o personagem que tentar montar para si uma trajetória elegeria por meio de sua interpretação aquela mais provável, e provavelmente estaria errado pois sua “história verdadeira” não tem a menor obrigação de fazer sentido, a não ser o sentido que ele projeta sobre ela.
Então para fins de construção do personagem, o aspecto mais importante do processo de criação do personagem é o jogador definir “Quem é o personagem agora!”, e não prostrar-se sobre “quem o personagem foi”, ou “como se tornou um vampiro”. Vale ressaltar que não necessariamente será mais simples e fácil definir o “eu” hoje do que fazer um “prelúdio” com toda uma história pregressa, de fato poderá ser ainda mais difícil como nossos jogadores estão acostumados a modelos rígidos de criação linear para personagens.
Eventualmente alguns jogadores, cientes das constantes mudanças de identidade, vão querer fazer personagens também cientes de tais mudanças e que queiram manter o seu “self”: permanecerem tal como são! Isso seria também interessante no jogo, quem sabe no futuro não se transformará num poderoso sub tema do jogo, tal qual “Vampiro: A Máscara” que é um jogo no qual o personagem deve manter a sua “Humanidade”, este poderá ser um tema pessoal para os jogadores que assim o quiserem. Todavia quais seriam os caminhos?... Um dispositivo em casa que anulasse os efeitos dos implantes, então afloraria sua verdadeira personalidade dentro de sua casa, seria então para este personagem a identidade algo territorial, uma vez que quando saísse a rua teria outra personalidade, e em um cenário que tal tecnologia fosse disponível e difundida, cada novo lugar implicaria em uma nova personalidade... Para que possa se “manter” sendo aquilo o que é um personagem precisa primeiro saber quem ele é, e isso passaria pelo julgamento de suas ações e sua história de vida... Vamos supor que um personagem grave com uma câmera toda a sua vida, possuindo assim um registro de fatos, e depois assista ao vídeo em busca de uma auto definição, e ao ver-se conversando com um homem o que deduzirá? O “assassino” dirá que quer matá-lo, o “gay” que esta em busca de sexo, o “nerd” que estão conversando sobre tecnologia. O personagem talvez possa registrar sua vida em um diário, de onde avaliaria sua vida do alto de seu conhecimento, como o de psicólogo por exemplo, seria ele então capaz de lê-lo quando retirasse seu chip e fosse um punk semi-analfabeto? De forma contrária um erudito entenderia as gírias de um punk ou a escrita em forma de enigmas de um sábio oriental?. Os fatos que julgue relevantes e os omitidos não seriam os mesmos para cada personalidade... Um hacker tecnolátra escreveria sobre o seu dia contando o que fez no computador ou como usou um novo software naquele dia, e omitiria suas relações pessoais, ao ler tal parte deste diário uma outra personalidade acharia tais acontecimentos ou feitos irrelevantes e lamentaria por tudo aquilo que não foi registrado e/ou guardado na memória, podendo ter por fim a sensação de que “desperdiçou” sua vida até o momento. O problema todo esta em ser capaz de comunicar-se consigo mesmo.

Finalizando, o tema da identidade não tem um fim em si mesmo, significa dizer que não é uma especulação filosófica, metafísica, não se trata de “prever” o futuro e pensar nos impactos que isso teria caso tais tecnologias de aprendizado fossem possíveis, mas sim o maneira de falar do próprio presente, tenho certeza que cada um em uma auto avaliação poderão perceber que trocas de identidade/personalidade/self ocorrem ao longo da vida, apenas hiperdimensionado esta a velocidade com que ocorrem tais mudanças!

PONTOS DE EXPERIÊNCIA


Um dos aspectos originais do jogo proposto são os “pontos de experiência”, tal característica “mecânica” será integrada a narrativa como algo que existe fisicamente dentro do universo do jogo: dinheiro!

Em outros RPGs os “pontos de experiência” são algo que fazem parte da “mecânica” do jogo, os personagens os acumulam e então “compram” novas habilidades, processo que gera hiatos narrativos: personagens se desviam do curso da história para justificar o conhecimento que procuram, ou então fazem avanços temporais seguidos de uma “micro narrativa” que justifica como gastou seus pontos de experiência, ou ainda muitas vezes é usado o recurso narrativo do flashback, pressupondo que já possuía tal característica mas nunca a havia exibido antes. Quando a tentativa de integrar os pontos de experiência a história não geram tais hiatos, o uso desses pontos é simplesmente ignorado: “Posso Aumentar?”, pergunta o jogador, “Pode.”, responde o narrador.

A confusão semântica com os termos “pontos de experiência” e “experiência” leva a outra falha estrutural: é quando as circunstâncias da história apresentada pelo narrador levam o jogador a “exercitar” características que não aquelas que ele deseja aumentar, um exemplo simples: No fim de uma seção de jogo, o jogador declara ao narrador que deseja aumentar “acadêmicos”, que proibindo responde: “Como vais aumentar ‘acadêmicos’ se passastes as ultimas três seções de jogo fugindo de carro e dando tiros?”. Problema este que também pode ocorrer devido ao “Tempo narrativo”: “Como vais aumentar acadêmicos se até a próxima seção de jogo só vai se passar uma hora?”.

Neste jogo tais hiatos narrativos e problemas estruturais não existirão, a medida que um personagem denotativamente “compra” suas habilidades. Poder-se-á, sim, virar um filósofo dando tiros, ou tornar-se especialista em computação em menos de uma hora.



AUMENTANDO PONTOS NA FICHA


É importante salientar que um jogador eventualmente aumentará determinada pontuação em sua ficha, no entanto o nível 2 de uma característica é uma coisa, um chip, e o nível 3 é outra coisa, um outro chip, não é o chip nível 2 melhorado!!! Portanto se o nível de uma determinada característica, como condução, por exemplo, deixou o personagem “agressivo”, não necessariamente significa que a sua correlação com o nível 5 será progressiva e linear: o deixando 5 vezes mais “agressivo”. Ela poderá deixá-lo menos agressivo, poderá dar-lhe característica que nada tem haver com agressividade, como passar a gostar de plantas, ou poderá sim deixá-lo 5 vezes mais agressivo.


PERMUTANDO CARACTERISTICAS


Se pensarmos em uma história com o único objetivo de pensarmos em uma “outra” história: outro clima, outro tema, outro tempo, outro cenário, outros NPCs. Essa outra história também exige outros personagens: A história sobre uma missão tripulada a lua tem quer astronautas como protagonistas, e não os protagonistas estilistas de uma história sobre um desfile de moda... Essa necessidade estrutural não existirá no jogo que se propõe, os jogadores poderão alterar a seu bel prazer e redistribuir os pontos em suas fichas, alterando suas capacidades, aparência, personalidade. Poderão fazer isso antes do começo de uma nova crônica ou durante ela, caso não tenham os ‘pontos de experiência’ necessários para fazê-lo, para comprar as características que julgarem indispensáveis ao cumprimento de uma nova missão, ou simplesmente queiram “poupar” seus pontos de experiência.
O jogador irá simplesmente “vender” suas antigas características para então “reinvestir” sua “experiência” comprando novas características, tanto “pontos de ficha” como sua subjetividade e até aparência poderá ser permutado, reconstruindo seus personagens...
Em nível prático, isto significa que ao começar uma nova crônica, os jogadores não precisam ficar tanto tempo construindo novos personagens, ou aceitarem personagens pré-criados pelo narrador que visa um começo rápido para sua história, simplesmente o mesmo personagem será “reciclado”. Mais do que um simples utilitarismo, pois ainda é cedo e não necessariamente tal recriação virá a ser menos trabalhosa que a criação de um novo personagem, isto serve ao tema central do jogo que é a constante recriação da identidade (criação e desconstrução da personalidade).
Olhando adiante, neste jogo não existe o interpretar “bem” ou “mal”, se muito tempo se passar até o grupo jogar uma outra crônica, as “incoerências” pelo fato de um jogador não lembrar direito de seu personagem e não retomá-lo como foi um dia nada mais representam que o esquecimento de si mesmo que um personagem sofre dentro do universo deste jogo...

O MUNDO ENQUANTO FALHA NARRATIVA


Uma das melhores descrições para o mundo deste jogo seria a de que o mundo é uma “narrativa falhada”. Em narrativas conjuntas não raro surgem situações que são classificadas como falha criativa do narrador, pois num processo de co autoria o narrador é responsável pela história enquanto os jogadores criam os personagens, essas “falhas criativas” surgem no momento em que uma história toma um rumo que não se adapta ou ignora o perfil dos personagens criados: Uma situação em que o narrador exige que um personagem escritor invada e roube uma casa; Uma situação onde um personagem pacifista tenha que cometer um atentado terrorista. Seguem-se acusações mútuas: o narrador transfere a responsabilidade ao jogador que não criou “corretamente” o personagem adaptado ao enredo (pois para o narrador o personagem é o veiculo pelo qual o enredo se move), o jogador acusa o narrador de não levar o seu personagem em consideração na criação da história (pois para o jogador uma história é o veiculo pelo qual ele atinge seus objetivos).Porém estas situações deixaram de ser “falha”, elas se tornam a proposta do jogo, se tornaram dilemas a serem resolvidos pelo jogador, pois o mundo deste jogo é um mundo que geralmente apresenta situações que ignoram o perfil dos personagens, tendo o jogador sempre condições de se adaptar ou tentar resistir: O personagem escritor pode se tornar um ladrão; pode estar interessado em viver fortes emoções para posteriormente descrevê-la em seu novo livro; pode tornar-se um ladrão e continuar escritor, posteriormente se tornando um escritor que cometa plágio,... etc...


PODERES / HABILIDADES ESPECIAIS / MODIFICAÇÔES



Na última etapa da criação do personagem o jogador deve decidir sobre suas habilidades especiais / poderes (Pode também decidir que não terá nenhuma), para isto não existirá uma lista pré definida, aconselha-se a fazer como em “Mago: A Ascenção”, o jogador pode criar os “efeitos” que desejar, desde que use um paradigma tecnológico para justificá-lo. Depois seguirá em conjunto com o narrador, que o orientará a seguir o conjunto de regras que são as únicas regras que o cyberpunk segue: a Estética. (Fica legal! Ou não fica legal!).

No entanto atentemos para um problema de léxico, vocabulário, a palavra poder torna-se aqui polissêmica: os “poderes” que o personagem criar não são poderes, as “habilidades especiais” não são habilidades especiais, contextualizando-os no universo do jogo: os poderes e habilidades de um personagem são produtos que ele consome, produzidos em série e disponíveis para qualquer outra pessoa com o mesmo poder aquisitivo ( nível de experiência), poder é algo que se obtém através do consumo.

A relação dos personagens com a tecnologia e o conhecimento que a produz é uma relação de consumo, eles não participam de seu processo de produção. Eventualmente algum jogador pode querer mudar essa relação, fazendo um personagem que siga um arquétipo muito comum na ficção cientifica, que é o de “gênio”, “inventor”, produzindo e engenhando seus próprios aparatos, fazendo de suas criações algo “individual”, único, que só pode ser produzido por seu próprio intelecto, isso seria interessante quando contextualizado, pois no fim ele descobriria que seu gênio inventivo produziu algo menos eficiente do que as corporações já produziram em massa, ou o levaria a problemas de “direitos autorais”, “patente” com os aglomerados corporativos.

Outro arquétipo comum na relação pessoal com a tecnologia é a do “super usuário”, diferentemente do inventor ele não produz a tecnologia, mas é capaz de fazer um uso dela em nível superior ao das outras pessoas, como a figura arquetípica do “hacker”, com super habilidades para usar um computador, um super piloto de nave que é o único que realiza certo tipos de manobras, um “jedi” que é o que melhor maneja um sabre de luz. Da mesma forma, dentro deste universo, tanto a tecnologia como o seu uso, habilidade ou sua manipulação serão produtos engarrafados, disponíveis a todos que puderem pagar o preço.