

Um dos temas mais recorrentes no cyberpunk é a “identidade”, ou a sua perda, uso dois exemplos que acho que serão os mais conhecidos entre nossos jogadores: Em “bladerunner” o policial caçador de andróides descobre que é ele mesmo um andróide, em “Matrix” neo é o funcionário de uma empresa de software, que descobre que é um humano escravizado pelas máquinas, que descobre que é o “escolhido” para salvar a humanidade. Entretanto todas essas histórias possuem uma estrutura fixa: o protagonista sempre parte de uma “identidade inicial” para no fim descobrir o seu “eu” verdadeiro. No jogo proposto tem-se o fim de uma “identidade final”, definitiva, não existe um “eu” verdadeiro, nem sequer é fácil definir uma identidade inicial, apenas a constante construção/desconstrução e reconstrução da identidade.
A alma/mente é uma tabula rasa onde o conhecimento pode ser escrito livremente, e neste mundo a técnica/tecnologia proporciona “modos de escrita” mais avançados que qualquer modelo de aprendizagem tradicional. No entanto tal conhecimento/habilidade não se transfere de forma “neutra” e “unidimensional” para a mente do individuo, eles podem portar valores históricos da época em que foram produzidos, das pessoas que a produziram, da finalidade para a qual foram produzidas, etc... Em termos práticos significa que alteram a subjetividade/personalidade de um personagem: Adicionam-lhe ou suprimem traços morais, comportamento, visão de mundo, objetivos de vida, e tudo o que disso possa advir. Para aprender Kung-Fu dos monges amarelos do Tibet um personagem simplesmente vai até a banca da esquina, compra o chip específico e o implanta, a nova habilidade pode vir com um bônus: “saiba gratuitamente três frases da sabedoria milenar chinesa”, o que conferiria a ele um parco conhecimento de mandarim, e quando fosse de fato usar sua nova habilidade para cumprir determinada missão poderia ver-se sob um voto de “não matar”, e ainda tempos depois descobrir (ou não) que sua dieta também transformou-se.
Neste mundo a personalidade/self/identidadede um personagem é construída e transformada pelos produtos que ele consome.
A “moralidade” portanto não é uma espiral descendente como em “Vampiro”, tampouco uma linha curva ou em ziguezague como nos sistemas de “Karma” de outros RPGs, sequer é uma linha pois é descontínua, um personagem pode ser capaz dos feitos mais atrozes em um dia e realmente ser benevolente no outro, “Natureza” e “Comportamento” existem, todavia são dinâmicos. Um jogador ou personagem também pode operar tais mudanças voluntaria e conscientemente: existem chips de comportamentais, chips de personalidade... Digamos que certa missão requeira do personagem que se infiltre em um círculo de homossexuais, ele tem então a alternativa de se passar por um deles ou realmente sê-lo. Caso “torne-se” realmente um deles pode vir a simpatizar com seus agora ex-inimigos e abandonar a missão,pode perceber que não “tornou-se” um homossexual, dirá que na verdade sempre fora um, apenas reinterpretará sua vida e seu passado, recriando quais foram sempre suas verdadeiras motivações. Isso significa que um personagem que voluntariamente “troque” sua personalidade não tenha necessariamente controle sobre essa nova identidade, ou mesmo a certeza de como ela será, pois uma personalidade implantada pode não suprimir a antiga, pode também somar-se a ela dando origem a uma nova personalidade diferente da soma de suas partes: o personagem homo fóbico que implanta o chip de personalidade homossexual pode tornar-se hetero fóbico e ver os heterossexuais como aberrações da natureza, ou ainda reprimir sua nova “verdadeira natureza” tornando-se ainda mais homo fóbico, e por fim acabar matando um NPC antes de obter as informações que precisaria obter dele.
Para além do tema do jogo tem-se um novo aspecto estrutural, a fusão de duas etapas dissociadas no processo de criação do personagem: Mesmo o mais casual dos jogadores, aquele que simplesmente só põe bolinhas em uma ficha, estará concomitantemente já criando uma “personalidade” complexa, com todas suas contradições e dilemas.
Usando “Vampiro: A Máscara” como comparação, tem-se o fim da linearidade do “prelúdio”, o conceito de “história de vida” é difuso e dúbio, essa “história de vida” é criada e recriada, reinterpretada constantemente: O velho decrépito doutor em metafísica pode ter 23 anos de idade e ter passado por um procedimento de crescimento acelerado, a bela transeunte oriental na rua pode ter comprado gênero e traços asiáticos, sendo depois disso um músico negro. Cada um desses personagens tem sua “história de vida” individual, o fato interessante é que são todos fisicamente a mesma pessoa!!! Aquilo que a mulher oriental diz de seu período como um velho doutor não é o que o velho doutor diz de si e de seu período como mulher oriental, e certamente não será o que o músico negro dirá deles e de sua vida quando tornarem-se eles.
Não existe portanto um “prelúdio” que possa de forma determinista justificar o estado atual de um personagem, suas motivações ou circunstancias decisivas até ter se tornado quem é,, responder a pergunta “quem ele é?” através da pergunta “como se tornou o que é?”. Existem sim não uma, mas uma miríade de respostas possíveis, e o personagem que tentar montar para si uma trajetória elegeria por meio de sua interpretação aquela mais provável, e provavelmente estaria errado pois sua “história verdadeira” não tem a menor obrigação de fazer sentido, a não ser o sentido que ele projeta sobre ela.
Então para fins de construção do personagem, o aspecto mais importante do processo de criação do personagem é o jogador definir “Quem é o personagem agora!”, e não prostrar-se sobre “quem o personagem foi”, ou “como se tornou um vampiro”. Vale ressaltar que não necessariamente será mais simples e fácil definir o “eu” hoje do que fazer um “prelúdio” com toda uma história pregressa, de fato poderá ser ainda mais difícil como nossos jogadores estão acostumados a modelos rígidos de criação linear para personagens.
Eventualmente alguns jogadores, cientes das constantes mudanças de identidade, vão querer fazer personagens também cientes de tais mudanças e que queiram manter o seu “self”: permanecerem tal como são! Isso seria também interessante no jogo, quem sabe no futuro não se transformará num poderoso sub tema do jogo, tal qual “Vampiro: A Máscara” que é um jogo no qual o personagem deve manter a sua “Humanidade”, este poderá ser um tema pessoal para os jogadores que assim o quiserem. Todavia quais seriam os caminhos?... Um dispositivo em casa que anulasse os efeitos dos implantes, então afloraria sua verdadeira personalidade dentro de sua casa, seria então para este personagem a identidade algo territorial, uma vez que quando saísse a rua teria outra personalidade, e em um cenário que tal tecnologia fosse disponível e difundida, cada novo lugar implicaria em uma nova personalidade... Para que possa se “manter” sendo aquilo o que é um personagem precisa primeiro saber quem ele é, e isso passaria pelo julgamento de suas ações e sua história de vida... Vamos supor que um personagem grave com uma câmera toda a sua vida, possuindo assim um registro de fatos, e depois assista ao vídeo em busca de uma auto definição, e ao ver-se conversando com um homem o que deduzirá? O “assassino” dirá que quer matá-lo, o “gay” que esta em busca de sexo, o “nerd” que estão conversando sobre tecnologia. O personagem talvez possa registrar sua vida em um diário, de onde avaliaria sua vida do alto de seu conhecimento, como o de psicólogo por ex

Finalizando, o tema da identidade não tem um fim em si mesmo, significa dizer que não é uma especulação filosófica, metafísica, não se trata de “prever” o futuro e pensar nos impactos que isso teria caso tais tecnologias de aprendizado fossem possíveis, mas sim o maneira de falar do próprio presente, tenho certeza que cada um em uma auto avaliação poderão perceber que trocas de identidade/personalidade/self ocorrem ao longo da vida, apenas hiperdimensionado esta a velocidade com que ocorrem tais mudanças!
